Psicotécnicos para carreiras policiais acumulam denúncias de fraudes

No concurso da Polícia Penal do DF e da Polícia Civil de Goiás, o coordenador da avaliação psicológica foi indiciado em 63 processos por falsidade ideológica

Por Mateus Souza

O neuropsicólogo Demerval Bruzz tem sido requisitado para averiguar indício de falhas e fraudes em concursos públicos da Polícia Federal e da Polícia Militar do Distrito Federal. Entre as denúncias, um dos candidatos do concurso da Polícia Federal solicitou ao profissional a revisão de um teste psicotécnico. Como resultado, Demerval identificou um erro de cálculo que acabou por reprovar o concorrente que já havia sido aprovado nas demais avaliações do concurso de forma indevida. O caso não é isolado. No Brasil, todas as regiões enfrentam problemas similares e, por vezes, até piores, que acarretam na aprovação de candidatos incapazes de exercer a função e na reprovação de candidatos honestos e aptos.

O candidato já atuava na academia da instituição e estava a apenas um mês de concluir o curso, quando foi submetido ao teste e reprovado. “A Polícia Federal é a única instituição que mesmo depois de aprovado o candidato passa por diversas avaliações ao longo do processo”, explica o psicólogo.

Seguindo o protocolo habitual, Bruzzi foi à academia para buscar os resultados dos testes realizados pela banca. Na mesma noite, ao revisar os testes e preparar a defesa do candidato, ele conta que deparou-se com um erro de cálculo cometido pela banca examinadora.

Com o contato direto da presidente da banca em mãos, Demerval enviou um e-mail com os detalhes do erro encontrado, a fim de evitar qualquer prejuízo ao processo e à reputação da própria banca. No entanto, a tentativa de comunicação foi ignorada, sem resposta da banca.

No dia seguinte, ainda na tentativa de resolver a situação, Demerval dirigiu-se pessoalmente ao Cebraspe (Centro Brasileiro de Pesquisa em Avaliação e Seleção e de Promoção de Eventos), onde foi orientado a prosseguir com um recurso administrativo, dada a importância de documentar formalmente o incidente. “Recebi até um e-mail de agradecimento por ter identificado o erro, mas, apesar de minha visita ao Cebraspe, fui atendido apenas por telefone e e-mail”, relatou o psicólogo.

Apesar dos esforços conjuntos de Demerval e do candidato, o recurso foi rejeitado. Para complicar mais a situação, conforme o relato do psicólogo, até mesmo o cargo pretendido pelo candidato foi mencionado de forma incorreta na resposta oficial do processo jurídico.

Polícia Penal, Polícia Civil e Polícia Militar

O Instituto AOCP, responsável pela organização dos concursos da Polícia Civil de Goiás (PCGO) e da Polícia Penal do Distrito Federal, também foi alvo de suspeita por parte dos candidatos, que denunciaram irregularidades nos exames psicotécnicos realizados pela instituição.

A controvérsia veio à tona quando o psicólogo Ederson Fernando Mariano, cujo nome aparece nos laudos que resultaram na reprovação de candidatos, afirmou nunca ter trabalhado para o Instituto AOCP e negou qualquer envolvimento na assinatura dos documentos.

O advogado José da Silva Moura Neto, representante legal de alguns dos candidatos prejudicados, explicou que um dos clientes atendidos por ele, em Goiânia, descobriu que o psicotécnico foi fraudado. “Ele (o psicólogo) disse não ter qualquer tipo de vínculo com essa banca”, afirmou o advogado.

Após o escândalo vir à tona e um dos candidatos que foram prejudicados entrar em contato, Ederson Mariano tomou medidas legais e denunciou à Polícia Civil de Maringá (PR), cidade em que o profissional reside, o uso indevido do nome do profissional. Desde então, o caso também é investigado pelas autoridades do município.

Após a denúncia, o coordenador da avaliação psicológica Jorge Manuel Mendes Cardoso foi indiciado por falsidade ideológica. Ao todo, o nome de Ederson, vítima da prática ilegal, apareceu indevidamente em 63 processos de avaliação psicológica.

Na prática, o psicólogo do Paraná era usado para dar aspecto de credibilidade ao exame e a impressão de que havia uma banca que avaliaria o candidato, conforme relatou o advogado José Moura.

Com isso, parte dos candidatos eliminados recorreram da avaliação supostamente conduzida pelo psicólogo não vinculado. José Moura obteve decisão favorável para que 14 participantes do concurso da Polícia Penal retornassem à fase de eliminação, devido às possíveis irregularidades detectadas. Além disso, após uma apuração do Ministério Público, foram anuladas mais de 200 avaliações psicológicas no Distrito Federal.

Objetividade

Ao Fatos Online, o advogado especialista em casos que envolvem concursos públicos, sobretudo a parte psicológica, detalhou alguns dos aspectos exigidos pelo Conselho Federal de Psicologia (CFP) que não foram observados nas avaliações. Ele relatou que o erro incide em várias regiões do país.

“No concurso da Polícia Militar são cobradas quatro testes psicológicos pra avaliar 11 características, e um dos testes utilizados, que se chama BPR-5, é proibido pelo CFP. A utilização desse tipo de teste é infração ética. Usar o teste inválido contamina toda a avaliação”, detalhou o profissional.

Mesmo após as denúncias de irregularidades no processo seletivo, nem todos desembargadores invalidaram por completo a prova. José Moura explicou que o maior problema das avaliações psicotécnicas é a falta de objetividade e transparência no processo.

“Toda a jurisprudência fala que deve haver um mínimo de objetividade: características e nota mínima para ser apto. No caso da avaliação psicológica tem que ter previsão em lei, objetividade e recorribilidade (o candidato deve poder recorrer no processo). No edital do Cebraspe, eles colocam as característica como agressividade mas eles não falam quais as características ideias para ser aprovado. Isso é um problema”, detalhou Moura. Além disso, mesmo no caso do Cebraspe, em que as características são listadas, algumas delas são avaliadas por especialistas como subjetivas, como, por exemplo, “altruísmo”.

Cursinhos para passar

O advogado questionou ainda os inúmeros cursinhos disponibilizados na internet que “treinam” os candidatos para dar respostas aceitáveis e convenientes nas avaliações psicológicas.

“O problema da avaliação psicológica hoje é que existem muitos cursos que treinam para o psicotécnico. Ou seja, o candidato cria um personagem e é aprovado. Quem não está sendo aprovado, é quem está sendo honesto”, explica Moura.

Ele sublinha que os testes de maior validação envolvem mais de uma etapa, para que, caso o candidato incorra em algum erro, o avaliador possa julgar melhor a situação do aspirante ao cargo em outra etapa. As etapas são conhecidas como “teste, entrevista e observação comportamental”.

“Se no teste eu falar algo errado, no seguinte eu tenho a chance de mostrar outro aspecto. Então, a avaliação para ser correta, teria que ser dessa forma. Isso vai de encontro à resolução que regulamenta a aplicação da avaliação”, detalha.

Quando o regulamento não é seguido, Moura salienta que pode ocorrer de policiais serem aprovados nos testes, mesmo sem ter capacidade de ocupar cargos na polícia. Como exemplo, o advogado lembrou do caso em que três policiais rodoviários federais assassinaram Genivaldo de Jesus Santos, em Sergipe. Os agentes, aprovados no psicotécnico, prenderam a vítima no porta-malas de uma viatura da Polícia Rodoviária Federal (PRF) e o obrigaram a inalar uma grande quantidade de gás, introduzido no veículo pelos próprios policiais.

 

Tags

Share on facebook
Share on twitter
Share on whatsapp
Share on telegram